O Doce Problema da Inclusão: Encontrando Nosso Deus no Outro
Por Samir Selmanovic
Tradução de Gustavo K-fé Frederico
Do livro "An Emergent Manifesto of Hope"
Capítulo 16
ISBN 978-0-8010-6807-2
Baker Books
Originalmente publicado em http://gustavofrederico.blogspot.com
Chomina, cacique da tribo Algonquin, perdeu todos os seus homens protegendo uma expedição dos colonizadores Franceses do Quebéc ao viajarem 2500 quilômetros até a Missão Huron. Um inverno cruel, um ataque brutal, captura e tortura por uma outra tribo indígena Norteamericana resultaram em uma ferida mortal no cacique.
Notando o fim, o Padre Laforgue, jesuíta e líder da expedição, falou para o cacique:
- "Quando eu morrer, Chomina, eu vou ao paraíso. Deixe-me batizá-lo agora para que você também vá para lá."
-"Por que queriria eu ir ao seu paraíso?", respondeu Chomina. "Meu povo, minha mulher e meu filho não estariam lá."
No dia seguinte, enquanto o cacique permanecia deitado morrendo na neve, o Padre Laforgue tentou mais uma vez:
-"Chomina! Meu Deus ama você. Se você aceitar seu amor, ele o deixará entrar no paraíso!"
-"Deixe estar, meu amigo, deixe" murmurou Chomina morrendo.[1]
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Para muitos de nós, o problema não estava imediatamente visível. Descobrir o Deus da Bíblia parecia como peças de um quebra-cabeças de tudo o que é verdadeiro e lindo se encaixando. Um mundo plano virou 3D, a escala de cinzas virou colorida, como se alguém tivesse acendido a luz. Nós estávamos banhados em luz. A tempo nossos olhos se ajustaram e nós nos vimos nas sombras.
Sempre foi assim. Toda geração daqueles que decidem seguir a Cristo aprende que existem textos bíblicos a serem reinterpretados. Aqueles de nós que são parte da conversa sobre a igreja emergente acreditam que tais transformações são obras de Deus. E para a nossa geração, a sombra não é vista nas falhas das pessoas cristãs ou nas instituições cristãs disfuncionais, por mais falhas e imperfeitas que elas possam ser. Nossa sombra é a própria idéia de Cristianismo. Nossa religião tornou-se um sistema de gerenciamento de Cristo.
Nós sentimos grande alegria na aceitação da humanidade por Deus através de Jesus Cristo. Encheu nossas vidas de luz. Mas a idéia do Cristianismo que outras religiões não podem ser portadoras de graça e verdade projeta uma grande sombra sobre nossa experiência cristã. A graça, o ensino central do Cristianismo, permeia toda a realidade,ou será que ela é algo que está vivo somente naqueles que têm o Novo Testamento e a tradição Cristã? A revelação que nós recebemos por Jesus Cristo é uma expressão do que está em todo lugar em todos os tempos, ou será que o Evento Cristo esvaziou a maior parte do mundo e do tempo da graça salvífica e depositou-a em uma religião, a saber, a nossa? E de forma mais prática, como podemos nós ter uma conversa genuína de mão-dupla com não-Cristãos sobre nossa experiência de Deus se nós cremos que Deus retém sua revelação de todos a não ser os Cristãos?
Porque nós cremos que não há sombras em Cristo, nós não queremos nada menos do que reiterpretar a Bíblia, reconstruir a teologia, e reimaginar a igreja imitando o caráter de Deus que nós como seguidores de Cristo viemos a conhecer.
Quando eu me ponho no lugar do cacique Chomina, eu sinto o Espírito de Deus me perguntando: "O que você escolheria: vida eterna sem seus amados ou morte eterna com eles? " Chomina sabia a sua resposta. Ele preferiu morrer a viver sem seus amados. Movido pelo Espírito Santo, pessoas como Chomina rejeitam a idéia de lealdade ao nome de Cristo e, ao invés, querem ser como ele e assim aceitá-lo de forma mais profunda. Esta escolha entre aceitar o nome de Cristo e ser como Cristo tem sido posta na frente de milhões de pessoas ao longo da história humana e hoje.
Uma pessoa não precisa crer em Deus antes de viver na presença de Deus. Deus está presente queira acreditemos nele ou não [2]. E gente responde 'sim' a ele. Mark, um amigo meu não-Cristão de Nova Iorque, diz que pra ele "tornar-se parte do Cristianismo seria um retrocesso moral." Contudo, ele disse coisas como essa para mim: "Viver é receber um presente. Eu creio que há uma força transcendente acima da nossa existência e parece que a humanidade tem negligenciado este presente. É só olhar para o que nós estamos fazendo uns com os outros. Mas no meio da bagunça, eu vejo a graça de um novo começo por todos os lados ao meu redor. E dentro de mim. E eu várias vezes me esquivo de responder a ela. Eu participo da loucura ao invés. Todas as vezes na minha vida que eu me volto para essa graça para procurar por uma segunda chance, eu sempre ganho. Eu acho que eu quero gastar o resto da minha vida sendo um canal dessa mesma bondade a outros." Essa visão incorpora a doutrina da criação, do pecado, da salvação, e da nova vida. Isto é Cristo, encarnado na vida do Mark, presente em substância ao invés de nome.
Os Chominas e os Marks ao redor de nós deixam-nos pensando se Cristo pode ser mais que o Cristianismo. Ou até mesmo algo que não o Cristianismo. Será que os ensinos do evangelho estão embutidos e podem ser achados na própria realidade ao invés de serem isolados exclusivamente em textos sagrados e nossas interpretações desses textos? Se a resposta for 'sim', será que eles podem estar embutidos em outras histórias, histórias de outras pessoas, e até mesmo outras religiões?
A Idolatria do Cristianismo
Questões que visam a diferenciar Cristo e Cristianismo parecem cada vez menos absurdas do que antes. Comumente definido, o Cristianismo é "uma religião monoteísta centrada em Jesus de Nazaré, e na sua vida e ensinos como apresentados no Novo Testamento."[3] Vale à pena lembrar que Cristo nunca proclamou "O Cristianismo está aqui. Junte-se a ele." Mas Cristo insistiu "O Reino de Deus está aqui. Entrem."
O movimento da igreja emergente veio a acreditar que o contexto fundamental das aspirações espirituais de um seguidor de Jesus Cristo não é Cristianismo mas ao invés o Reino de Deus. Dando-se conta disso vêm várias implicações, e a que mais se sobressai é o fato de que, como qualquer outra religião, o Cristianismo é um não-deus, e todo não-deus pode ser um ídolo.
Atos de ganância, ódio, e negligência das pessoas junto com um Cristianismo que sujou o mundo através da História são um resultado de elas amarem alguma outra coisa mais do que Deus. O pecado é sempre um resultado desse deslocamento do coração de alguém. Alguém ou alguma coisa, um não-deus, torna-se o foco do amor de alguém. Um ídolo é gerado quando alguma coisa agarra a confiança funcional de um indivíduo ou grupo social. Acontece quando, em um relacionamento com Deus, algo além de Deus torna-se um valor inegociável.
Teria-se tornado a supremacia do Cristianismo nosso valor inegociável? Todo pecado é um resultado de algum compromisso de fé com coisas, pessoas, ou forças que não Deus, as quais são em última instância compromissos consigo próprias. Religião – qualquer religião – não se exclui dessas dinâmicas da experiência humana. [4]
As Escrituras frequentemente descrevem outras religiões como idólatras. Embora adorar ídolos frequentemente resultava em violência, sofrimento e degradação, esses eram apenas os sintomas de um problema maior que Deus tinha com adoradores de ídolos: sua tentativa de gerenciar Deus. Era a soberania de Deus que estava em questão.
No Velho Testamento, Deus repetidamente repreendeu seus seguidores por tratá-lo como um ídolo gerenciável, alguém que eles conseguiam evitar evitar através da religião. Cristãos conseguem imaginar coisas como dinheiro, sexo e poder como sendo ídolos. Mas a própria religião Cristã sendo um ídolo?
Certamente, se nós proclamamos que o Cristianismo está imune da idolatria, então nós chegamos à conclusão que, finalmente, Deus tornou-se "contido" pelo Cristianismo [5]. Nós acreditamos mesmo que Deus é melhor definido pela revelação histórica de Jesus Cristo, mas crer que Deus está limitado a ela seria uma tentativa de gerenciar Deus. Se alguém crê que Cristo está confinado no Cristianismo, ela escolhe um deus que não é soberano. Søren Kierkegaard argumentou que no momento em que uma pessoa decide tornar-se um Cristão, ela responde por idolatria. [6]
Religião, seja nas suas formas tradicionais ou pessoais, é a forma pela qual nós abordamos o poder e mistério por trás da vida, e já que todos os seres humanos têm que abordar o poder e o mistério por trás da vida, nós todos somos religiosos. Isto inclui cépticos que dizem "Eu não acredito em Deus. Eu não tenho religião." Isto é uma afirmação religiosa, uma afirmação de dogma. Religião é uma forma de nós justificarmos nossa existência, uma explicação sobre porque nós nos importamos. É nosso "sistema de imortalidade." [7] Então para que sobrevivamos, para que nossos sentidos permaneçam intactos, nós temos que desmanchar ou desacreditar os sentidos que são contraditórios aos nossos. Não é de surpreender que para muitos de nós imaginar a possibilidade de o próprio Cristianismo ser um ídolo no sentido bíblico da palavra é um pensamento traumático demais para considerar.
Será a nossa religião a única que entende o sentido verdadeiro de vida? Ou Deus deposita sua verdade em outras também? Bem, Deus decide e não nós. O evangelho não é nosso evangelho, mas o evangelho do reino de Deus e o que pertence ao reino de de Deus não pode ser sequestrado pelo Cristianismo. Deus é soberano, como o vento. Ele sopra onde ele escolhe.
Cedendo o Controle
O Cristianismo não pode ganhar de volta credibilidade ou cativar de novo a imaginação humana até que ele aprenda a existir para a finalidade de algo maior que si mesmo. As pessoas têm medo com razão de qualquer religião que não aceita seu lugar aos pés do Mistério Sagrado. Se o Deus Cristão não é maior do que o Cristianismo, então simplesmente não se pode confiar no Cristianismo.
Aos olhos de um número crescente de pessoas buscando a Deus, Cristãs ou não, o Cristianismo tem desenvolvido um sentimento de importância sem limite. Por outro lado, existe potencial e beleza em uma religião que consegue pôr o bem do mundo acima da sua própria sobrevivência.
Paradoxicamente, o Cristianismo professa confiar na deidade mais peculiar de todas as religiões: o Deus que encarnou-se, tornou-se um servo, e morreu para algo mais importante para ele do que sua própria vida.
O futuro do Cristianismo depende da sua própria vontade em servir algo maior que si mesmo. Se o Cristianismo quiser ressuscitar tornando-se uma nova vida, ele deve almejar ser como o Deus que ele professa e ceder o controle a algo mais querido do que sua própria vida. E o que pode ser melhor que o Cristianismo? O reino de Deus, é claro. Este reino supera o Cristianismo em escopo, profundidade e expressão. Isto é verdade independentemente de nós falarmos em um Cristianismo "Sem-Jesus" ou "Com-Jesus". Até mesmo na sua melhor forma, a religião Cristã é ainda uma entidade na dimensão humana.
Quando nós dizemos que só Cristo salva, Cristo representa algo maior que a pessoa que nós Cristãos vimos a conhecer. Ele é tudo em todos. E Cristo sendo "o único caminho" não é uma afirmação de exclusão mas de inclusão, uma expressão do que é universal [8]. Se um relacionamento com uma pessoa específica – a saber, Cristo – é a substância total de um relacionamento com o Deus da Bíblia, então a grande maioria das pessoas na história do mundo estão excluídas da possibilidade de um relacionamento com o Deus da Bíblia, juntamente com os Hebreus do Antigo Testamento, que não deixaram de ter conhecimento de Jesus Cristo, a pessoa. A pergunta importante que deve ser perguntada é: iria [o] Deus que dá revelação suficiente às pessoas para serem julgadas mas não revelação suficiente para serem salvas ser um Deus digno de adoração? Nunca!
Deus ilumina todos seres humanos que vieram a existir e abre um caminho para um relacionamento com ele. A Bíblia diz que se uma pessoa fala como um anjo, mas age como um demônio, suas ações valem mais que suas palavras. Suas ações suplantam sua fé. Da mesma forma, alguém pode negar uma fé que está evidente em sua vida [9]. Meu amigo Mark de Nova Iorque serve a Jesus em substância ao invés de palavras, vivendo uma fé em Deus sem palavras [10]. Em outras palavras não há indicações na Bíblia que esta dinâmica se aplica apenas a indivíduos e não a grupos. Religiões vivem debaixo de leis espirituais do reino de Deus. Falando de outras religiões, o teólogo Miroslav Volf afirma: "Deus pode utilizar suas convicções e práticas religiosas, ou Deus pode trabalhar fora dessas convicções e práticas [...] É assim em parte como o Deus que doa e perdoa trabalha nos Cristãos também, várias vezes usando mas também às vezes contornando suas convicções e práticas." [11] Em outras palavras, não há salvação fora de Cristo, mas há salvação fora do Cristianismo.
Nos últimos dois mil anos, o Cristianismo deu a si mesmo um status especial entre as religiões. Uma geração emergente de Cristãos está simplesmente dizendo "Chega de tratamento especial. Nas Escrituras Deus estabeleceu um critério de verdade, e tem a ver com os frutos de uma vida graciosa" (Ver Mateus 7.15-23; João 15.5-8; 17.6-26). Isto é desconcertante para vários de nós que baseamos nossa identidade em uma noção de ter a verdade de uma forma abstrata. Mas a mesa de Deus dá as boas-vindas a todos que buscam, e se qualquer religião deve ganhar, que seja aquela que produz pessoas que são as mais amorosas, as mais humildes, as mais parecidas com Cristo. Qualquer que seja o significado de "salvação" e "julgamento", nós Cristãos vamos ser salvos por graça, assim como todos os outros, e julgados por nossas ações, assim como todos os outros. [12]
Tornando-nos Aprendizes Mestres
A sabedoria é tão gengil e sábia
que para onde for que olhes
tu podes aprender algo sobre Deus.
Por que não ensinaria o Onipresente desta forma?
Santa Catarina de Siena
Para a maioria dos críticos de tal Cristianismo aberto, o problema com a inclusão é que ela permite que verdade seja achada em outras religiões. Para Cristãos emergindo, este problema é bom. Na verdade, em vez de ser um problema, é um motivo para celebrar. Nós não queremos só tolerar [a] característica divina "do outro" como se nós nos arrependêssemos da possibilidade. A característica divina de não-Cristãos não é uma anomalia na nossa teologia. Em vez de adicioná-la como um apêndice nos nossos estatutos de crenças, nós queremos movê-la para o centro e celebrá-la assim como os céus certamente a celebram. O evangelho ensinou-nos a alegrar-nos com a bondade que podemos achar nos outros.
Mais ainda, se não-Cristãos podem conhecer nosso Deus, então nós queremos tirar proveito das contribuições deles à nossa fé. Porque Deus é soberano, presente em qualquer lugar onde ele queira estar, nossa atitude de só aceitar a possibilidade de salvação e característica divina em outros sem uma atitude de aprender com eles nada mais é que preguiça, um pecado que nasce do orgulho. Além de se alegrar, celebrar significa aprender sobre Deus de outros.
Na verdade nós temos feito isso toda semana na nossa igreja. Nós usamos ilustrações de sermões de todos os aspectos da vida debaixo do sol para ilustrar o evangelho do reino de Deus, mas nós não nos atrevemos a usar e dar crédito a tais ilustrações quando elas fazem parte da religião de outro alguém, como a vida de Maomé ou uma história Zen. Por quê? É porque nós temos medo de achar nosso Deus ali assim como nós o achamos em todos os outros lugares? Cristo, o apóstolo João, e o apóstolo Paulo não tiveram medo. Eles usaram termos, conceitos, e fontes de outras religiões da época para transmitir o sentido do evangelho. Eles podiam fazê-lo, e nós não podemos, simplesmente porque Jesus, João, e Paulo não [eram do] Cristianismo mas [eram do] reino de Deus.
Isto explica um outro fenômeno. Se nós acreditamos que o método fundamental de propagar as Boas Notícias é amando pessoas, por que não-Cristãos tão raramente se sentem amados por Cristãos? Minha tese é que o amor aceita o que os outros têm a oferecer e nós pensamos que não-Cristãos não têm quase nada a adicionar a aquilo que é mais valioso para nós, a saber: o evangelho. Embora nós aceitemos suas virtudes com admiração e suas fragilidades com compaixão, no fundo nós não experamos adicionem a aquilo que vale mais para nós: nosso conhecimento e nosso relacionamento com Deus. Nós retemos deles a possibilidade de serem nossos professores. Sem uma atitude de aprendizado, nós não entramos no relacionamento sagrado do tipo "Eu/Tu". E é por isso que eles se retraem. O mundo está isolando de nós o que nós estamos isolando do mundo. [13]
Nós queremos prover o que falta a eles, cuidar das suas necessidades, e ensiná-los o que eles querem saber. Esta posição de doador permite-nos ter um sentimento de controle. Mas amor verdadeiro significa saber como receber. Você ama a sua avó quando você leva receitas para ela; você ama estranhos quando você precisa da companhia deles; você ama os seus pais quando você precisa dos seus conselhos; você ama suas crianças quando você precisa do seu perdão; você ama seus amigos quando você ouve suas histórias. Nós não amamos mesmo alguém até que nós peguemos o que eles precisam dar a nós. Embora nós várias vezes pensemos em Deus como auto-satisfeito, que não precisa de nada, Deus honra-nos necessitando de nós. Esta necessidade de Deus de nós é simbolizada no mandamento do Sábado que tem nenhum outro motivo além de criar um espaço no tempo quando Deus pode apreciar nossa atenção completa, quando um amado pode simplesmente estar com sua amada. O Rabino Abraham Joshua Heschel explicou uma vez como a maior necessidade humana é tornar-se uma necessidade. Deus precisa que nós participemos com ele na cura do mundo.
Nós também amamos outros não apenas dando mas recebendo. Eu fui um Muçulmano, e depois um Ateu, e depois um Cristão. Eu tornei-me um seguidor de Cristo porque um outro Cristão achou os passos de Deus na minha história e na minha religião naquele tempo. Ele me amou aprendendo sobre Deus a partir da minha história. Antes de me ensinar, meu amigo pegou o que eu tinha a oferecer.
Os seguidores de Deus não são chamados para serem os mestres de Deus, mas para serem aprendizes mestres. Quando levada a cabo corretamente, esta atitude não relativiza o que cremos. Na realidade ela radicaliza o que cremos porque ela estabelece Deus como Soberano, aquele que "brilha em tudo o que é justo." [14] Um aprendizado humilde e convicções fortes não são mutualmente exclusivas porque a humildade não é um sinal de fraqueza mas de força. Respeito genuíno pelo que outros podem adicionar à nossa fé não compromete nosso compromisso Cristão, mas o expressa ao invés. É por isso que evangelismo deve ser uma via de mão dupla. Se nós experamos que outros aprendam de nós e que mudem, nós devemos primeiro permitir uma possibilidade real de que nós tenhamos algo a aprender deles e sermos mudados pelo que aprendemos. É o medo e não a força das nossas convicções que não nos deixa aprender sobre nosso Deus de outras religiões.
Preocupações Com Identidade
Se nós aceitarmos a possibilidade de que outras religiões têm histórias redentoras ou verdades nelas, então o que vai ser da nossa identidade? Iria este tipo de humildade sem cuidado levar-nos a um grande sopão de religiões onde a carne do evangelho se perde entre as batatas e as cenouras de outras religiões?
Humildade é a força mais poderosa no reino de Deus. É só ver Deus se ajoelhando diante sua criação na pessoa de Jesus lavando nossos pés (ver João 13). Através da humildade que está no cerne da encarnação e da expiação, Deus nos evangeliza (ver Fil 2.4-11). É por isso que a humildade encerra tal promessa para o futuro do Cristianismo. Ela não exclui evangelismo, mas melhora grandemente suas perspectivas. [15]
Humildade é a expressão máxima de coragem. No contexto do reino de Deus, uma pura demonstração de poder é simplesmente fraca demais para ser efetiva. Nós criamos uma falsa tensão entre manter nossa identidade Cristã intacta e abordar o mundo com humildade. Humildade deve ser nossa identidade. Quando nós abrimo-nos para sermos ensinados pelo "outro", nós não nos tornamos menos seguidores de Cristo, mas mais.
Chegamos ao ponto de aceitarmos a depravação de cada ser humano e a necessidade de arrependimento para cada pessoa, mas no momento em que nós nos agrupamos em denominações Cristãs, ou na religião Cristã como um todo, a doutrina da depravação de repente desaparece das nossas consciências. Na verdade, comportar-se como tendo toda a verdade sobre Deus e abolindo a dúvida saudável é a forma máxima de conformidade – porque toda religião tem um complexo de superioridade – e, portanto, [também] uma perda de uma verdadeira identidade. No mundo como um todo, nenhum grupo ou religião está se arrependendo muito de qualquer coisa hoje. É por isso que ser "penitentes mestres" não seria uma perda de identidade; seria um primeiro passo para nos tornarmos "aprendizes mestres" e [para a] renovação da nossa identidade como uma comunidade Cristã. Nós devemos ser aqueles que [se] convertem primeiro , aqueles que entregam suas armas e se submetem ao Deus Soberano, aqueles que não priorizam nada mais que o reino de Deus, até mesmo [sendo] nossa querida religião.
Meu amigo Mark de Nova Iorque perguntou-me mais de uma vez: "Por que vocês Cristãos querem que o Cristianismo vença o tempo todo? Vocês não parecem saber como viver em um mundo onde vocês não mandam." Isto me fez pensar sobre a história do Cristianismo e suas aspirações de deter o controle. Olhando para trás nostalgicamente para os tempo quando o Cristianismo era um império, nós monitoramos sem cessar nosso poder, nosso crescimento, nossos números, nosso sucesso financeiro, [e] nossa força política. Talvez tenha chegado o tempo de o Cristianismo perder.
Perder a vida é ganhá-la. Não seria a primeira vez em que Deus sairia fora da religião, a qual contém sua mensagem, e faria algo novo. Se Deus achou por bem que seus seguidores saíssem da clausura de uma religião dois milênios atrás, por que deveríamos nós esperarmos que Deus não faça tal coisa no tempo presente? Talvez o Cristianismo deva ser diluído e repartido, gasto como Jesus, quem se doou por esse mundo.
Se nós buscamos primeiro o reino de Deus, então talvez até nossa querida religião, salva de nós mesmos, nos será acrescentada.
-----[1] Esta cena é do filme Black Robe de 1991. Padre Laforgue (Lothair Bluteau) e o cacique Chomina (August Schellenberg) são personagens da novela de Brian Moore que foi adaptada para o filme. A estória é histórica [sic].
[2] Ler o capítulo “Poslúdio: Uma Conversa com um Céptico” em Miroslav Volf, Free of Charge: Giving and Forgiving in a Culture Stripped of Grace (Grand Rapids: Zondervan, 2005).
[3] Ver www.wikipedia.org., verbete “Cristianismo”
[4] O pastor Timothy Keller da Igreja Presbiteriana Redeemer de Nova Iorque desenvolveu esta idéia de religião como “salvação própria” e conversão como uma “transferência de confiança” melhor do que qualquer pessoa que eu conheço.
[5] A noção de que o Cristianismo não pode ser um candidato a idolatria foi recentemente expressa por D. A. Carson, cujo argumento equilibra-se sobre a premissa de que os pecados do Cristianismo são sempre um desvio do Cristianismo verdadeiro (Becoming Conversant with the Emergent Church, 201-202). Contudo, o mal feito sob a bandeira do Cristianismo não pode ser deixado de lado dizendo-se “Isso não era Cristianismo verdadeiro” O Cristianismo é o que é. Deixar de lado os pecados do Cristianismo apelando a uma idéia platônica de um certo “Cristianismo verdadeiro” é tanto disonesto com outras religiões e inútil para Cristãos. Nós simplesmente nunca tivemos nem nunca teremos Cristianismo puro e verdadeiro.
[6] Eu parafraseio Kierkegaard aqui. Seus livros trouxeram-me à fé Cristã e eu recomendo Either/Or (New York: Penquin/Putnam, 1992) e Fear and Trembling/Repetition: Kierkegaard’s Writtings, vol. 6 (Princeton, NJ: Princeton University, 1983). Ele consegue criticar o Cristianismo de uma forma que compele o leitor a tornar-se um Cristão.
[7] Ernest Becker, um autor ganhador do prêmio Pulitzer por seu livro Denial of Death, escreve sobre isto no seu último livro Escape from Evil (New York: Free Press, 1975). Ele diz: “Cada pessoa nutre sua imortalidade na ideologia da auto-perpetuação, à qual ele dá sua lealdade; isto dá a sua vida o único significado que ela pode ter. Não é de se espantar que homens se enfurecem com pontos pequenos da crença: se o seu adversário ganhar o argumento sobre verdade, você morre. [Se] seu sistema de imortalidade mostrou-se ser falível, sua vida torna-se falível” (64).
[8] Inclusivismo, uma visão sobre o destino dos não-evangelizados, afirma que todas as pessoas têm uma oportunidade de serem salvas respondendo a Deus em fé baseada na revelação que elas têm. Em contraste com o restritivismo de um lado e universalismo de outro, inclusivismo afirma a particularidade e finalidade da salvação somente em Cristo mas nega que [o] conhecimento da sua obra é necessário para salvação. Inclusivistas crêem que o trabalho de Jesus é ontologicamente (em substância) necessário para salvação mas não epistemologicamente (em nome) necessário. Entre aderentes à visão inclusivista estão Justin Martyr, Zwingh, John Wesley, C.S. Lewis, Wolfhart Pannenberg, e Clark Pinnock. No século XX, de todas as tradições, a teologia Católica Romana abraçou mais decisivamente o inclusivismo, com o “Cristianismo anônimo” de Karl Rahner sendo a apresentação mais celebrada dele. Hoje, entre evangélicos, inclusivismo está começando a desafiar a supremacia do restritivismo. Para textos bíblicos chaves e um tratamento sólido de todas as três visões veja No Other Name, de John Sanders (Grand Rapids: Eerdmans, 1992).
[9] Exemplos disso incluem a parábola de Jesus do julgamento em Mateus 25.31-46 e o relato sobre o encontro de Pedro com Cornélio em Atos 10.23-48.
[10] Para vários exemplos dessas dinâmicas da Bíblia, a história e os escritos de autores como C.S. Lewis, ver Sanders, No Other Name, capítulo 7.
[11] Volf, Free of Charge, 223.
[12] Eu descobri este ensino óbvio do Novo Testamento quando lia The Last Word and the Word after That de Brian McLaren (San Francisco: Jossey-Bass, 2005). Basta a pessoa olhar para qualquer discussão sobre julgamento ou obras no Novo Testamento para ver esta verdade.
[13] Para uma discussão resumida desse conceito, ver o capítulo 23 em Between God and Man, de Abraham Hescel (New York, Free Press, 1997)
[14] Esta frase do hino Cristão “O Mundo é Teu, Senhor” é frequentemente usada para expresser o ensino da “graça comum”, graça que Deus dá para sustentar todo o mundo, diferenciada da graça que salva. Contrastando, o inclusivismo (ver n° 8) argumenta que toda revelação é revelação salvífica e que qualquer graça que Deus extenda a nós não é só para sustentar o mundo, mas para salvá-lo.
[15] Budismo e Alcoólicos Anônimos já provaram o argumento.