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Monday, January 10, 2011

As Treze Colônias do Norte

Trecho de "As Veias Abertas da América Latina", Galeano.


AS TREZE COLÔNIAS DO NORTE E A IMPORTÂNCIA DE NÃO NASCER IMPORTANTE

A apropriação privada da terra sempre se antecipou, na América Latina, ao seu cultivo útil. Os traços mais retrógrados do sistema de posse, atualmente vigente, não provêm da crise, mas nasceram durante os períodos de maior prosperidade; ao contrário, os períodos de depressão econômica apaziguaram a voracidade dos latifundiários pela conquista de novas extensõés. No Brasil, por exemplo, a decadência do açúcar e o virtual desaparecimento do ouro e diamante tornaram possível, entre 182O e 185O, uma legislação que assegurava a propriedade da terra a quem a ocupasse e a fi zesse produzir. Em 185O, a ascensão do café como novo "produto rei" determinou a sanção da Lei de Terras, cozinhada segundo O paladar dos políticos e dos militares do regime oligárquico, para negar a propriedade para os que nela trabalhassem, na medida em que
143 iam-se abrindo, até o sul e o oeste, os gigantescos espaços inteiros do país. Esta lei "foi reforçada e ratificada, desde então, por uma copiosíssima legislação, que estabelecia a compra como única forma de acesso à terra e criava um sistema cartorial de registro que tornava quase impraticável que um lavrador pudesse legalizar sua posse.. 126
A legislação norte-americana da mesma época propôs-se ao objetivo oposto, para promover a colonização interna dos Estados Unidos. Gemiam as.carretas dos pioneiros que iam estendendo a fronteira, às custas de matanças dos índios, até as terras virgens do oeste: a Lei Lincoln de 1862, o Homested Act, assegurava a cada família a propriedade de lotes de 65 hectares. Cada beneficiário comprometia-se a cultivar sua parcela por um período não menor do que cinco anos 127. O domínio público colonizou-se com uma rapidez assombrosa: a população aumentava e se propagava como uma enorme mancha de óleo sobre o mapa. A terra acessível, fértil e quase gratuita, atraía os camponeses europeus como um ímã irresistível: cruzavam o oceano e também os Apalaches rumo às pradarias abertas. Foram os granjeiros livres, assim, os que ocuparam os novos territórios do centro e do oeste. Enquanto o país crescia em superfície e em população, criavam-se fontes de trabalho agrícola para evitar o desemprego e ao mesmo tempo gerava-se um mercado interno com grande poder aquisitivo, a enorme massa dos granjeiros pToprietários, para sustentar o desenvolvimento industrial.
Em compensação, os trabalhádores rurais que há mais de um século mobilizavam com ímpeto a fxonteira interior do Brasil, não foram nem são famílias de camponeses livres em busca de uma nesga de terra própria - como observa Darcy Ribeiro - mas, trabalhadores braçais, contratados para servir aos latifundiários, que previamente tomaram posse dos grandes espaços, vazios. Os desertos interiores nunca foram acessíveis à população rural. Em proveito alheio, os trabalhadores foram abrindo o país, a golpes de facão, através das selvas. A. colonização foi uma simples extensão da área latifundiária. Entre 195O e 196O, 65 latifúndios brasileiros absorveram a quarta parte das novas terras incorporadas à agricultura 128.

Estes dois sistemas opostos de colonização interior mostram uma das diferenças mais importantes entre os modelos de desenvolvimento dos Estados Unidos e da América Latina. Por que o norte é mais rico e o sul mais pobre? O rio Bravo marca muito mais do que uma fronteira geográfica. O
profundo desequilíbrio de nossos dias, que parece confirmar a profecia de Hegel sobre a inevitável guerra entre uma e outra América, nasceu da expansão imperialista

[ 126. Darcy Ribeíro, Las Américas y la civilización, Tomo II, los pueblos nuevos, Buenos Aires, 1969.
127. Edward C. Kirkland, Historia económica de Estados Unidos, México, 194t.
128. Celso Furtado, Um projeto para o Bmsil. Rio de Janeiro, 1969. 144 ]

dos Estados Unidos ou tem raízes mais antigas? Na realidade, no norte e no sul tinham-se gerado, já na matriz colonial, sociedades muito pouco parecidas e a serviço de fins que não eram os mesmos 129. Os peregrinos do Maylower não atravessaram o mar para conquistar tesouros legendários nem para arrasar civilizações mdígenas inexistentes no norte, mas para se estabelecer com suas famílias e reproduzir, no Novo Mundo, o sistema de vida e de trabalho que praticavam na Europa. Não eram mercenários, mas pioneiros; não vinham para conquistar, mas para colonizar: fundaram "colônias de povoamento". É certo que o processo posterior desenvolveu, ao sul da baía de Delaware, uma economia de plantações escravistas semelhante à que surgiu na América Latina, mas com a diferença que nos Estados Unidos o centro de gravidade esteve, desde o começo, radicado nas granjas e oficinas da Nova Inglaterra, de onde sairiam os exércitos vencedores da Guerra de Secessão no século XIX. Os colonos da Nova Inglaterra, núcleo original da civilização norte-americana, não aCuaram nunca como agentes coloniais da acumulação capitalista européia; desde o princípio, viveram ao serviço de seu próprio desenvolvimento e do desenvolvimento de sua terra nova. As treze colônias do norte serviram de desembocadura ao exército de camponeses
e artesãos europeus que o desenvolvimento metropolitano ia lançando fora do mercado de trabalho. Trabalhadores livres formaram a base daquela nova sociedade deste lado do mar.

Espanha e Portugal contaram, em compensação, com grande abundância de mão-de-obra servil na América Latina. A escravização dos indígenas sucedeu o transplante em massa dos escravos africanos. Ao longo dos séculos, houve sempre umalegião enorme de camponeses desempregados disponíveis para serem transferidos aos centros de produção: as zonas florescentes coexistiram com as decadentes, ao ritmo dos auges e quedas das exportações de metais preciosos ou açúcar, e as zonas em decadência supriam de mão-deobra as zonas florescentes. Esta estrutura persiste até hoje, e ainda implica um baixo nível de salários, pela pressão que os desempregados exercem sobre o mercado de trabalho, e frustra o crescimento do mercado interno de consumo. Mas além disso, ao contrário dos puritanos do norte, as classes dominantes da sociedade colonial latino-americana não se orientaram jamais para o desenvolvimento econômico interno. Seus ganhos vinham de fora; estavam mais vinculados ao mercado estrangeiro do que à prória comarca. Donos de terras, mineiros e mercadores tiriham nascldo para cumprir esta função: abastecer a Europa de ouro, prata e alimentos. Os caminhos transportavam cargas num só sentido: rumo ao porto e aos

[129. Lewis Hanke e outros autores Do the Americas have a common History? (Nova lorque, 1964) ]

 mercados de ultramar. Esta é também a chave que explica a expansão dos Estados Unidos como unidade nacional e o fracionamento da América Latina: nossos centros de produção não estavam conectados entre si, porém formavam um leque com o vértice muito longe.
As treze colônias do norte tiveram, pode-se bem dizer, a dita da desgraça. Sua experiência histórica mostrou a tremenda importância de não nascer importante. Porque no norte da América

não tinha ouro nem prata, nem civilizações indígenas com densas concentrações de população já organizada para o trabalho, nem solos tropicais de fertilidade fabulosa na faixa costeira que os peregrinos ingleses colonizaram. A natureza tinha-se mostrado avara, e também a história: faltavam metais, e mão-de-obra escrava para arrancar metais do ventre da terra. Foi uma sorte: No resto, desde Maryland até Nova Escócia, passando pela Nova Inglaterra, as colônias do norte produziam, em virtude do clima e pelas características dos solos, exatamente o mesmo que a agricultura britânica, ou seja, não ofereciam à metrópole, como adverte Bagú 130, uma produção complementar. Muito diferente era a situação das Antilhas e das colônias ibéricas de terra firme. Das terras tropicais brotavam o açúcar, o algodão,
o anil, a terebintina; uma pequena ilha do Caribe era mais importante para a Inglaterra, do ponto de vista econômico, do que as treze colônias matrizes dos Estados Unidos. Estas circunstâncias explicam a ascensão e a consolidação dos Estados Unidós, como um sistema economicamente autônomo, que não drenava para fora a riqueza gerada em seu seio. Eram muito frouxos os laços que atavam a colônia à metrópole; em Barbados ou Jamaica, em compensação, só se reinvestiam os capitais indispensáveis para repor os escravos na medida em que se iam gastando. Não foram fatores raciais, como se vê, os que decidiram o desenvolvimento de uns e o subdesenvolvimento de outros: as ilhas britânicas das Antilhas não tinham nada de espanholas nem portuguesas. A verdade é que a insignifïcância econômica das trezes colônias permitiu a precoce diversificação de suas manufaturas. A industrialização norte-americana contou, desde antes da independência, com estímulos e proteções oficiais. A Inglaterra mostrava-se tolerante, ao mesmo tempo que proibia estritamente que suas ilhas antilhanas fabricassem até mesmo um alfinete.

130. Sergio Bagú, op. cir. 146

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