Um teólogo brasileiro, Valdir Steuernagel, disse uma vez que teologia é pessoal. Que a história do teólogo está por trás do seu fazer-teologia. Estou aqui dando uma palinha de mim mesmo, por assim dizer, enquanto tento falar algo sobre este mistério do além.
Uma das características do Anabatismo que eu admiro é a sua ênfase na resolução de conflitos. A brabeza, ao meu ver, implica em tensão ou desentendimento. Várias vezes as palavras bravas precedem ou anunciam alguma ação violenta. Então pode-se perguntar: reagir sem raiva é melhor do que reagir com raiva? Existe “conflito bom”? Eu creio que existe “conflito bom”. Palavras bravas podem ser compreensívels, desejáveis ou necessárias, dependendo do contexto.
Silêncio
Contrastando com a brabeza eu vejo uma outra reação: o silêncio. Existe uma interpretação perigosa de certas passagens bíblicas como se elas sempre prescrevessem o silêncio e a imobilidade. Quando alguém é ofendido, ferido ou desrespeitado, a pessoa pode escolher não reagir. Isto, porém, pode ser uma prescrição para a pessoa viver tormentada por dentro. Ficar em silêncio pode também aprovar os atos ofensivos. A pessoa seria machucada por fora e por dentro. Existem várias passagens que nos induzirão a não ficarmos bravos. Jesus disse “Bem-aventurados os mansos” [Mateus 5:5a, JFA]. E também “Se alguém lhe der um tapa na cara, vire o outro lado para ele bater também” [Mateus 5:39b NTLH] Isaías descreve o Messias: “Ele foi maltratado, mas aguentou tudo humildemente e não disse uma só palavra.” [Isaías 53:7a NTLH] O poeta escreve em Lamentações 3 “Quando Deus nos faz sofrer, devemos ficar sozinhos, pacientes e em silêncio. Quando somos ofendidos, não devemos reagir; mas sim suportar todos os insultos.” [ Lamentações 3:28,30 NTLH] Mas pensemos: o autor de Lamentações escreve 5 poemas e orações e diz para ficarmos sofrendo em silêncio? Se nós lermos um pouco mais à frente no mesmo capítulo o autor já está orando com raiva: “Ó Senhor, dá-lhes o que merecem, castiga-os pelo que têm feito. Amaldiçoa-os e faze com que eles caiam no desespero. Persegue-os na tua ira, ó Senhor, e acaba com eles aqui na terra!” [ Lamentações 3:64-66 NTLH]
Jesus Bravo
Ao olharmos também para Jesus não devemos apenas preconceber um simples Jesus “gentil” que disse “bem-aventurados os mansos”. Também devemos aceitar um Jesus bravo que chama Herodes de raposa, o que aparentemente era um grande insulto. Nós também devemos nos lembrar do Jesus bravo que chamou aos líderes religiosos do seu tempo de “guias cegos”, “tolos e cegos”, “hipócritas”, e “cobras venenosas, ninhada de cobras!”. Você acha que eles se sentiram ofendidos? Você tem algum problema com esse Jesus? Nós devemos também aceitar um Jesus irado expulsando mercadores e consumidores do templo [ Mateus 11:12,13 ]. Dr. Walter Wink explica que “dar a outra face” naquele contexto cultural pode ser algo diferente do que muitos pensam. Naquela época, um senhor repreendia um escravo com um tapa com a mão direita na sua face direita. Se a pessoa ofendida oferecesse o lado esquerdo do rosto, o agressor precisaria bater na pessoa não como senhor, mas como semelhante. Seria um ato de identificação do abuso e exposição do mesmo como tal, sem escalar a violência.
Quado eu era criança, meu tio, que é pastor Batista no Brasil, me falou uma vez sobre um cristão. Meu tio descreveu como este irmão era manso. Disse que nunca ninguém ouviu falar nada mau vindo dele nenhuma vez. Uma vez, contudo, quando alguém “pisou no seu calo”, ele disse “Seu bobo!” E ele imediatamente sentiu muita culpa com sua explosão de raiva e depois orou a Deus pedindo perdão. Eu não conheci esse homem, mas penso que esses tipos de sentimentos precisam sair do peito para nosso próprio bem-estar. A inércia pode ser uma tentativa de suprimir sentimentos. E isso não é bom. Nós não devemos simplesmente assumir a “inércia” como virtude moral.
Eu valorizo os momentos quando a realidade bate à nossa porta e vemos as coisas mais claramente. Somos confrontados pela realidade de falha, dor, sofrimento e injustiça. Há algo bom quando há espaço para que nossas expressões de condição humana brotem. Eu gosto desse tipo de oração: a respiração da condição humana.
Graça e Condição Humana
Vendo de uma forma, pode não haver problema na igreja em geral convidar pecadores ao arrependimento e a buscar viver ‘padrões mais elevados de moralidade’. Eu creio, contudo, que existe um problema comum que merece um pouco de cuidado. Quando tal convite para ‘padrões mais elevados de moralidade’ vira uma prescrição para noções preconcebidas de comportamento que fazem a pessoa virar uma espécie de super-herói espiritual, nós tendemos a esconder os aspectos não tão bonitos de nossa condição humana. Em outras palavras, se a igreja só mostrar ‘bom comportamento’, ela não abrirá espaço para que nossas imperfeições apareçam. É melhor que nossas imperfeições apareçam ou devemos escondê-las? Peter Rollins escreveu sobre isso desta maneira: “Qual é a alternativa para tentar manter princípios éticos? A resposta é criar espaços de graça nos quais sejamos convidados a trazer nossas trevas à luz, a falar delas em um ambiente no qual não seremos condenados ou culpados. Uma comunidade que nos deixará falar nossas ansiedades e trevas sem pedir que mudemos. Em suma, um lugar onde nós poderemos confrontar nossa humanidade ao invés de fugir dela”.
Existe um problema inerente quando noções de “espiritual” e “do mundo” ou “sagrado” e “secular” são postas em tensão umas contra as outras. Se ser mais espiritual significar ser menos humano, mostras de humanidade certamente rotularão a pessoa como não-tão-espiritual.
Deus Acontece Dentro da Vida Humana
Em 2010, como alguns de vocês sabem, eu e minha família passamos o ano no Brasil. Eu conheci algumas famílias que moravam perto de um lixão e que trabalhavam reciclando. Elas foram removidas à força para o meio do nada pelo governo em um esquema de corrupção com subsídio do Banco Mundial. Joaquim foi um jovem removido junto com sua família. Eles eram membros de uma igreja evangélica de uma denominação grande. Quando Joaquim e outros notaram que nada aconteceria, decidiram fazer algo. Formaram uma pequena associação de bairro. Tentaram falar com políticos locais. Eles tentaram contactar a imprensa local. Acharam um advogado pro bono. Eles até mesmo escreveram um email em Inglês para os burocratas mais altos do Banco Mundial. Por alguma razão, a igreja local não gostou do que o Joaquim fez. Ele foi disciplinado, sendo suspenso do seu papel de líder na igreja e sua família ficou proibida de tomar a santa ceia. Eventualmente ele e sua família foram convidados a se retirarem da igreja. Disseram a ele que estava confiando na justiça dos homens e não na justiça de Deus.
Deus está no controle da História, nós estamos no controle da História ou é tudo aleatório? Se nós simplesmente dissermos que “Deus está no controle da História”, será difícil de entender como permite tanto sofrimento. Se nós simplesmente dissermos que “nós estamos no controle da História” ou que é tudo aleatório, podemos dar a entender que Deus não age e renunciaríamos a esperança e o sentido. O teólogo brasileiro Leonardo Boff escreveu sobre Bultmann e seus discípulos: "Depois de Kant [...] devemos terminantemente excluir qualquer objetivação de Deus, mesmo a denominação de espírito e pessoa. Deus não é objeto de conhecimento nem existe simplesmente como existem as demais realidades. Ele acontece dentro da vida humana. Ele é aquele acontecimento que permite surgir o amor e no qual o mau e o desesperado recebem esperança e futuro. [...] Deus continua a desempenhar uma função: ele é o símbolo para o comportamento que Cristo exigiu de todos: irrestrito amor e obediência desinteressada aos apelos de reciprocidade ilimitada. Onde quer que se dê isso, lá está Deus presente" [“Jesus Cristo Libertador”, L. Boff, p.210] O teólogo latinoamericano Juan Luis Segundo escreveu: “Se cada palavra de Deus não se referir a uma experiência humana, ela se torna como uma mensagem escrita em uma linguagem desconhecida” [“A Libertação da Teologia”, Juan Luis Segundo]
Eu particularmente fico bravo quando alguém explica a injustiça como sendo algo natural. Especialmente quando o desfavorecido e o pobre são condenados a sofrer por serem quem são. O homem que criou a política do FMI do Brasil nos anos 60 se chamava Roberto Campos. Para justificar a política na qual empresas brasileiras tinham que pagar taxas de juros 7 vezes maiores que empresas estrangeiras, ele disse: “Obviamente, o mundo é desigual. Há quem nasça inteligente e há quem nasça tolo. Há quem nasça atleta e há quem nasça aleijado. O mundo se compõe de pequenas e grandes empresas. Uns morrem cedo, na plenitude da vida; outros se arrastam, criminosamente, numa longa existência inútil. Há uma desigualdade básica fundamental na natureza humana, na condição das coisas. Disto não escapa o mecanismo do crédito.” [Roberto Carlos, CPI da Câmara de Deputados, 6/9/1968] Em outras palavras, o destino de alguns é sofrer para alimentar a ganância de outros poucos extremamente ricos e isto está escrito nas estrelas. Nos círculos religiosos, palavras que espiritualizam relações humanas injustas ou palavras que recorrem a Deus para estigmatizar os “mais humildes dos meus irmãos” são especialmente perigosas. Um dos pastores brasileiros mais famosos, Silas Malafaia, por exemplo, disse que a pobreza é o resultado da disobediência às leis de Deus.
Se Deus acontece dentro da vida humana, orações são conversas com esta vida e seus contextos. Se Deus acontece dentro da vida humana, a História é sagrada. Especialmente as versões relatadas pelos “mais humildes dos meus irmãos”. Eu costumo prestar mais atenção à consciência que atribui a Deus e a nós mesmos ao mesmo tempo a responsabilidade do nosso destino. Com palavras de raiva é mais fácil pegar Deus pra bode expiatório do que assumir a responsabilidade individual e coletiva por nossas ações ou falta de ações.
A Bíblia em Uma Mão, o Jornal na Outra
O cerco de Jerusalém em 587 A.C. pelos Babilônios contém imagens muito violentas. Quando leio Lamentações relaciono-as a algumas histórias brasileiras. Algumas delas talvez sejam violentas demais para descrever aqui. Uma das leituras que chama a minha atenção nesses textos é que eles falam não só de sofrimento e palavras bravas a mim, mas eles também aludem a um contexto maior e a como relações entre nações influenciam as vidas de pessoas comuns. Quando leio “temos de comprar a nossa própria água de beber; temos de pagar pela nossa própria lenha”, “para termos o que comer, precisamos de pedir, estendendo as mãos aos egípcios e aos assírios” [Lamentações 5:4,6 NTLH] eu me lembro de alguns amigos meus no Brasil que tem que comprar gás do mercado negro controlado pela polícia. Quando eu leio “Deus sabe quando neste país os prisioneiros são massacrados sem compaixão. O Deus Altíssimo sabe quando são desrespeitados os direitos humanos, que ele mesmo nos deu. Sim, o Senhor sabe quando torcem a justiça num processo” [Lamentações 3.34-36 NTLH] eu me lembro do massacre do Carandiru, onde 111 presidiários foram mortos pela polícia em um dia em 1992. Os líderes religiosos de Jeremias foram culpados de convocarem as pessoas a resistirem aos Babilônios e isto resultou em mais mortes. Eles perseguiram Jeremias e tentaram matá-lo fazendo lobby com o rei. Lemos em Lamentações 4:13: “Tudo isso aconteceu por causa dos pecados e das maldades dos seus profetas e dos seus sacerdotes, culpados de causar a morte de pessoas inocentes”. Minhas palavras bravas não são relacionadas a perseguição pessoal, mas elas falam contra os deputados evangélicos no Congresso Nacional, que recentemente votaram contra o Projeto de Emenda Constitucional que confiscava terras com trabalho escravo.
Os poemas em Lamentações não tentam explicar, nem justificar, nem ajudar a entender o sofrimento. Ao invés, eles mostram conversas com Deus que olham para a realidade e lutam sinceramente com o divino. Nós só choramos porque existe esperança que alguém ouça.